O Bruce Wayne do Capão Redondo
Braços cobertos de tatuagens, alto e porte grande, sua figura se anuncia pelo ronco da moto que serpenteia as ruas do Capão Redondo, periferia de São Paulo. Mesmo em alta velocidade, ele não passa desapercebido, especialmente quando sai com o capacete em forma de caveira. Seu nome e telefone estão espalhados pelos muros dos principais cruzamentos, anunciando serviços de construção. Grafiteiro nas horas vagas, a maior parte dos moradores da região conhece seu traço. Mas poucos sabem da sua mais famosa e secreta identidade.
Ele é o Batman do Capão.
Foi capa do jornal Folha de São Paulo, entrevistado no programa do Jô Soares, do Danilo Gentili e já apareceu em telejornais no SBT, Band e Gazeta. É o líder do grupo Loucos pela Paz, que protesta pelo fim da violência na periferia desde novembro, quando explodiu o número de assassinatos de policiais e de moradores das regiões pobres do estado. Para chamar a atenção da mídia para a guerra que aterroriza seu bairro, os 12 homens e mulheres vestem fantasias e descem de rapel importantes viadutos da capital.
Como insiste em guardar a identidade secreta, troquei seu nome verdadeiro por Bruce Wayne –escolha bastante óbvia.
Nos quadrinhos e no cinema, Bruce é um milionário que banca o Batmóvel e todos os Bat-apetrechos necessários. O do Capão reclama do prejuízo que leva a cada aparição, quando a polícia apreende as faixas e material de escalada. Neto de um pedreiro e possível representante da nova classe média, ele tem uma pequena empresa de serviços para construção civil. Bruce faz pintura de prédios, assim aprendeu a usar a cadeira pendurada na corda de rapel – técnica utilizada para descer dos viadutos. “No começo usava cadeira profissional, era mil reais de prejú, agora uso a de madeira à moda antiga”.
Na casa onde os Loucos Pela Paz se reúnem, conheci ainda as identidades secretas do Patatá, do Zorro e do Homem das Cavernas, um senhor de barba comprida, cabelos grisalhos e muitos anéis nos dedos, que é o dono da casa. O local é a de sede de um Moto Clube do qual grande parte dos heróis faz parte.
O grupo já fazia trabalhos voluntários no bairro, as manifestações nasceram de uma tentativa desesperada de chamar a atenção para um problema que não costuma ganhar as páginas dos jornais. Em novembro de 2012, depois de assassinatos de policiais, seguidos por chacinas de civis, Bruce e todos os moradores da região foram submetidos a um toque de recolher. A partir das 22 horas, o comércio fechava e só se via na rua quem voltava tarde do trabalho. A situação ainda persiste em algumas regiões.
Ao ver na televisão a cena de uma menina da idade de sua filha chorando no caixão do pai, Bruce teve um clique. “Ele não tinha nada a ver com essa guerra entre a polícia e o crime, aí vem os caras e sentam o aço? Podia ser qualquer um aqui do Capão”.
No mesmo dia, pegou o material de grafite e desenhou um grande cemitério no muro de uma avenida. No meio, uma cova aberta e um ponto de interrogação. Mas a subprefeitura apagou tudo em menos de 24 horas. Afogando a raiva na cerveja, um amigo fez piada: “Faz de outro jeito, mano. Sei lá, se pendura duma ponte!”, rindo ao ouvir as próprias palavras. Bruce não riu e gostou da ideia. Logo convenceu os membros do Moto Clube a participar.
Desde então, desceram o Viaduto do Chá, a ponte João Dias, pararam o trânsito na Avenida 23 de Maio, na Bandeirantes e surpreenderam os gabinetes dos senadores paulistas em Brasília. A cada protesto, são levados à delegacia e depois liberados.
As faixas que eles carregam pedem melhorias salariais para policiais e professores. Eles negam ter filiação partidária, mas atendem a chamados de sindicatos. A última viagem à Brasília foi parcialmente financiada por uma entidade de classe ligada à Polícia Militar. O governador Geraldo Alckmin costuma ser o principal alvo. Bruce explica: “E quem a gente vai culpar por essa guerra entre polícia e crime?”.
Na página do grupo no Facebook, que tem 6.900 “curtidas”, Batman defende a redução da maioridade penal. Nessa semana, escreveu a seguinte frase ao lado da imagem de uma criança machucada: “Pensando seriamente em aposentar a roupa do Batman e vestir a do justiceiro”.
Ele confessa que já houve um período em que fez justiça com as próprias mãos. Há mais de dez anos, disputava os muros do Capão com pichadores. À noite, saia com amigos grafiteiros caçando os rivais. “Quando pegava, a gente pintava os caras de preto”. Em um episódio, diz que usaram até chicote contra os inimigos. “Hoje, quando deixo minha marca, pichador nenhum mexe”.
Na imprensa, as matérias sobre o Batman giram em torno das fantasias e do trânsito gerado pelos protestos. “Nem sempre a mídia é produtiva”, ele lamenta.
Seu maior trauma foi o Programa do Jô. O apresentador apontou um erro de concordância no cartaz, onde se lia “falta professores”. Batman retrucou que o responsável “deve ter estudado nas escolas do Malckmin”, em referência ao governador Geraldo Alckmin. Jô encerrou dizendo que era “fácil jogar a culpa nos outros” e a entrevista azedou.
Inconsolável, Bruce assistiu ao programa inúmeras vezes. “Na hora, perdi até o ar. Eu era fã do Jô, assistia desde pequeno. A gente não tinha visto o erro, não precisava aquilo”. No protesto seguinte, encomendaram um cartaz com o português assumidamente errado, um protesto e uma autocrítica de sua própria condição.
Hoje aos 38 anos, Bruce paga colégio particular para sua filha, mas ele também estudou na rede que critica. Na 6a série, mudou de um colégio adventista para a rede estadual. “Na escola do estado, era só passar de ano sem aprender. Eu me formei, mas considero que estudei só até a 6a”.
Um de seus maiores orgulhos como Batman foi o pedido de um professor. “Ele disse pros alunos que era o Batman e me pediu pra não desmentir se alguém perguntasse no Facebook. De vez em quando entram uns alunos lá escrevendo pra ele. Eu achei da hora. O mais legal é isso: o Batman pode ser qualquer um aqui do Capão”.
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